Sempre tive vontade de contar essa história. Como nunca gostei de falar em
congressos ou simpósios, aceitei imediatamente escrever sobre esse caso clínico, que
muito marcou a minha carreira de musicoterapeuta.
Recebi uma indicação para atender uma senhora a quem chamarei de Tereza,
que tinha uma doença neurodegenerativa progressiva: Demência de corpos de Lewi.
Sem entrar em maiores detalhes sobre a doença, pois entendo que esse não seja o
foco principal do meu relato, vale ressaltar alguns aspectos importantes: Declínio
cognitivo progressivo, alucinações visuais recorrentes, distúrbio comportamental,
comprometimento da memória, sinais parkinsonianos entre outros.
Dona Tereza me foi indicada por seu geriatra, pois havia sido uma pianista
clássica de grande sucesso que fez carreira nos EUA. Tornou-se professora e depois
diretora de um dos mais renomados conservatórios do país. Quando começou a
apresentar sinais da doença, a família decidiu trazê-la de volta ao Brasil, pois aqui
poderia ser melhor acompanhada.
A doença já se encontrava num estágio avançado quando fui vê-la pela primeira
vez em sua casa. Bastante desorientada, já numa cadeira de rodas, me recebeu com
sua cuidadora, que ao abrir a porta me apresentou da seguinte forma: Chegou a sua
professora de música! Minha reação diante da equivocada apresentação foi de total
surpresa, e por uns segundos fiquei muda! Confesso que estou bastante acostumada a
esse tipo de situação, mas naquele caso específico, isso simplesmente, na minha
cabeça, não podia ter acontecido. Ser apresentada como professora de piano para
uma grande pianista não tinha o menor cabimento.
Antes que pudesse falar qualquer coisa, Dona Tereza olhou para mim e falou:
“Você veio ter aulas de piano comigo, meu preço é 100 dólares a hora mas não sei se
tenho horário”. A deixa foi dada! Imediatamente entendi que o equívoco da cuidadora,
poderia se transformar numa enorme possibilidade terapêutica. Dona Tereza poderia
voltar a dar aulas de piano e eu me prestaria a ser sua aluna.
O fazer musical que aconteceria entre a dupla, Professora e Aluna, traria em si,
uma enorme quantidade de estímulos cognitivos, estímulos de memória, estímulos
auditivos e visuais, sem contar, na minha opinião, o aspecto mais importante de todos:
O Resgate afetivo de uma vida que foi se perdendo diante de uma doença
avassaladora. Dona Tereza poderia voltar a ser sujeito de si própria e
consequentemente, sua auto estima poderia novamente se fazer presente.
Nesse ponto proponho uma pausa e um retorno ao curso de formação de
Musicoterapeutas no CBM. Esse caso clínico, me obrigou a lançar mão de todo um
arsenal de conhecimentos que me foi passado durante a faculdade: Aulas de Teatro,
pois precisei atuar. Aulas de Neurologia e psiquiatria para entender como esse tipo de
demência se desenvolvia e quais suas consequências. Aulas de música, no meu caso
o piano.
Eu precisava tocar, acertar o conteúdo musical, assim como também precisava
errar, para que ela pudesse me corrigir. Eu fazia perguntas dentro das limitações da
paciente, para que tentasse responder ou mesmo tentasse demonstrar tocando no
piano, apesar de seus movimentos já estarem comprometidos. Obviamente isso exigia
um esforço dela, mas ao contrário de desistir ela se esforçava para “atender às minhas
demandas”. Enfim um caso difícil, delicado e ao mesmo tempo muito bonito e
desafiador, pois através do fazer musicoterápico poderia tentar devolver a essa
senhora, uma parte importante de sua vida, roubada pela doença.
As sessões aconteciam diante de seu piano de cauda. Inicialmente era uma vez
por semana. Segundo a família, Dona Tereza sempre perguntava pelo dia que sua
aluna retornaria pois precisava preparar a aula. Ela parece ter sido uma professora
bastante severa pois quando eu ” errava” me dava uma bronca! Recebia também
elogios quando acertava, e fazia questão de deixar claro, que isso só era possível pois
era uma excelente professora e ela abria um grande sorriso!
Com o passar do tempo a família me pediu para atendê-la duas vezes por
semana e em seguida três vezes. Eles estavam realmente muito satisfeitos com a
melhora que podiam notar, principalmente relacionada ao quadro depressivo que ela apresentava.
Após cerca de um ano Dona Tereza faleceu. No final, já não podia sair do leito,
mas eu continuava indo três vezes por semana ao seu encontro. Levava o teclado, já
que não podia mais se dirigir até o piano, tocava e ela continuava com suas
intervenções e seus comentários. Cabe destacar aqui, que me dizia: ” O som do piano
está horrível, muito metálico!”. Realmente estava, pois se tratava de um teclado
daqueles antigos, cujo som era realmente muito ruim, mas isso ela não podia entender.
Sua percepção sonora continuava lá, intacta. Sabia que havia algo errado, algo
estranho e muito diferente do que estava habituada. A doença não foi capaz de lhe tirar
essa noção, essa certeza que havia algo muito importante fora do lugar.
Assim termino o relato deste caso que tanto me marcou. Acredito que houveram
alguns aspectos para que isso tenha acontecido de forma tão intensa. Destaco aqui
uma característica que desconhecia em mim, a capacidade de improvisar, de ter que
rapidamente resolver uma situação inesperada. Por mais que possamos nos preparar
para um determinado atendimento, quem realmente irá nos mostrar o caminho, será
sempre o paciente.
Outro aspecto para mim importantíssimo, foi o lugar que o tratamento
musicoterápico ocupou na vida dessa senhora. Todas as outras terapias que ela
realizava, como Fisioterapia, Terapia Ocupacional e Fonoaudiologia foram suspensas
pela família. No lugar delas, foram sendo acrescentadas mais sessões de
Musicoterapia por semana. Esse reconhecimento por parte da família, foi sem dúvida,
algo que me fez ter a certeza absoluta da grande diferença que os musicoterapeutas
podem exercer na vida de seus pacientes.
Gisela Mirian Gleizer