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Eu e ele…

Mensalmente, às quintas feiras na cidade onde eu morava, acontecia o QuintALL. Um
sarau com palco aberto que reunia poetas, músicos amadores, jovens e crianças que
quisessem apresentar seus textos, poesias, músicas ou composições. Na plateia, sempre
na primeira fileira, eu via um jovem de 16 anos cadeirante com paralisia cerebral que
movia-se com felicidade e euforia e emitia sons vocálicos em sinal de contentamento a cada
apresentação. Um dia me aproximei e me apresentei a ele e à sua mãe. Perguntei se ela
conhecia musicoterapia e ela disse que ele havia feito por algum tempo na infância. Ali
nascia nossa parceria: Gabriel e eu nos tornamos comparsas de fabricar sonhos e isso
seria muito mais que um processo de musicoterapia. Eu sugeri que eu e o Gabriel
apresentássemos no sarau uma peça juntos. Não lembro a canção agora, mas ele ficava
com o pandeiro na mão e, em algum momento, movia-o como conseguisse. No dia da
apresentação ele estava mais eufórico e radiante que o habitual. Foi linda nossa estreia e
depois disso, o contrato da musicoterapia foi feito. Passei a atendê-lo em regime domiciliar
com reembolso parcial do seu convênio de saúde. Uma vez por semana, no quarto do
Gabriel, a gente fazia música juntos. Ele não era um garoto comum e hoje, com seus vinte e
poucos anos, também não é um rapaz comum. Gabriel possui um carisma e uma vitalidade
que se esparramam por onde passa. Fã dos Paralamas do Sucesso, tem a baqueta
autografada e foto com várias bandas no seu quarto. Vai a shows de vários artistas. Eu e
Gabriel uma vez fomos juntos ao um show do lendário Buena Vista Social Club. A vida do
Gabriel era movimentadíssima e repleta de oportunidades. O início do meu trabalho de
musicoterapia com o Gabriel não foi simples. A minha experiência prática com pessoas com
paralisia cerebral era zero. Eu não quis estagiar na faculdade com essa clientela pois
lembro que já me angustiava lidar com uma mente consciente em um corpo restrito. No
entanto, minha vida de terapeuta nunca passou por escolhas e sim por demandas e por
desafios muito mais de ordem humana, afetiva e espiritual. Aceitei o Gabriel como paciente
apenas com a experiência que eu tinha. Liguei para pedir supervisão, um socorro, alguma
literatura ou qualquer coisa que me tirasse do limbo do “não sei o que fazer.” Liguei para a
Mt Camila A. Gonçalves. Ela sempre foi minha companheira de estrada. Ela entrou na
minha vida como estagiária de musicoterapia e foi com ela a minha estreia como
supervisora. Depois fizemos shows, compomos juntas e por muito tempo, quando eu não
atuava como musicoterapeuta, foi ela a responsável por nunca me deixar sair do campo.
Ela dizia: Você é musicoterapeuta sim e sua leitura é de musicoterapeuta. Ela me
empurrava para fóruns do SUAS e me dava broncas quando eu chamava meu trabalho de
oficina terapêutica de música. Lembro um dia, na nossa história de amizade, que ela
chegou a ceder seu quarto para eu dormir quando eu estava gestante de oito meses. Nessa noite, para que eu ficasse confortável, ela dormiu numa poltrona com seu enorme gato
branco no colo. Nunca me esqueci disso. Algumas cenas são poesias plantadas na
memória. Sobre o meu novo paciente Gabriel, Camila me disse: “ Você sabe sim o que
fazer com o ele! Você é boa no que faz. Segue a sua intuição! Vai saber o que fazer!”.

Certo dia, quando Gabriel já estava em processo de musicoterapia há dois anos, eu
cheguei e ele estava reticente. A expressão sem sorriso e a tensão nos músculos do rosto,
denunciava que algo não estava legal naquele dia. Cumprimentei ele e perguntei se estava
tudo bem. E virou o rosto. Ofereci alguns materiais e ele jogou tudo no chão. “Briguei” com
ele, pensando que impor limite seria importante pois ele não poderia quebrar materiais. Ele
manteve-se frio, duro. Eu, no meu lugar protegido de terapeuta, continuei oferecendo
possibilidades para ele me expor o que estava havendo. Ele tinha o domínio da
comunicação sinalizando “sim” ou “não” por meio de gestos. Entretanto nada o tirava
daquela tensão e recusa. Respirei. Ele nunca tinha ficado daquele jeito. Fiz o que minha
colega-amiga havia, há dois anos atrás, me falado: Siga sua intuição. Quando precisamos
seguir nossa intuição e quando precisamos da técnica? Quando abrir o canal do encontro
humano e deixar o contrato e as regras de lado? Essa é uma dimensão pouco falada nas
formações, mas acredito que ela seja algo muito presente dada à nossa especificidade de
trabalhar com a não-palavra, com o silêncio, com o não dito, com o som e o anti-som.
Minha intuição levou meu corpo para perto dele. Meu rosto para perto do dele, meu ombro
para perto da sua cabeça e eu disse intuitivamente sem planejamento algum. Eu disse: “
Chora Gabriel, pode chorar se quiser…Eu estou aqui. Pode chorar aqui… Chora… vamos
cara! Chora!” Alguns segundos de silêncio e em seguida aquela tensão deságua no meu
ombro. Ele desatou a chorar, o choro mais comovente que eu já ouvi na minha vida. A
gente ouve muita criança chorando mas choro de adulto é diferente. Tem outros contornos
sonoro-musicais, outra tessitura, outra amplitude de ondas. Ele chorou copiosamente em
alto e bom som numa catarse sonora. Eu não sei explicar o que senti. Mas eu sei que
aquele dia eu entendi uma coisa muito importante para minha profissão de
musicoterapeuta: Não há nada que eu possa fazer em alguns momentos além da escuta e
do acolhimento. Que eu não vou saber o que acontece dentro dos meus pacientes e que
qualquer pressuposição dessa natureza é pura afetação do meu ego. Que esse lugar do
“somos duas almas perdidas aqui” permeia o encontro e não deve ser negada. Aprendi que
muitas vezes eu ia trazer a música, o objeto sonoro, a banda predileta, a possibilidade de se
expressar, mas que em muitos momentos eu viveria com ele, compartilharia com ele esse
lugar de impotência, imobilização, limitação, onde o corpo nada pode fazer a não ser chorar.

Minha história com Gabriel seguiu maravilhosa pois, tempos depois, extrapolamos o
setting musicoterápico e conseguimos realizar o sonho dele de tocar numa banda. Foi do
desejo de Gabriel que surgiu a banda inclusiva “Os Goiabeiras” que virou documentário e
circulou América do Sul, selecionada pela 12ª edição da Mostra Cinema e Direitos
Humanos . Foi ele que me ensinou que viver é um prazer e uma dor independente do corpo
que nos carrega, dos movimentos que temos. Gabriel me fez mais humana, mais empática,
mais pequena e nesse sentido, foi ele que deu amplitude aos meus movimentos. Obrigada
Gabi!

Bárbara Trelha – Bacharel em Musicoterapia (FAP), Licenciada em Música (UFPR), Mestre em Artes (UDESC), Especialista em Psicomotricidade (OPET) e Doutoranda em Música (UDESC).

  • Links associados ao texto e imagem da reportagem contida no link: https://secarte.ufsc.br/era-um-garoto-que-como-eu-amava-os-beatles-e-os-rolling-stones-sera-exibido-na-12a-mostra-de-cinema-e-direitos-humanos-no-cic/

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